sexta-feira, 2 de maio de 2014

Acidente e propósito


Acidente e propósito, um texto que antes era impossível.

Decidi escrever alguma coisa sobre este assunto. Não há muito para a aprender com estas poucas palavras. O meu registo pretende ser apenas uma constatação de uma trajectória que não passou de um acidente de percurso ou certamente mais do que isso, um plano propositadamente traçado que não consegui evitar.

Se escolher a via do acidente é porque irei lembrar-me das coisas menos que esta escolha me provocou na vida, mas se escolher a via do propósito é porque depois de todos os erros cometidos eu escolheria inevitavelmente cometê-los de novo, porque a satisfação pessoal no presente que resultou dessas escolhas é muito mais gratificante que qualquer adversidade vivida no passado. Houve momentos em que poderia ter “dado sopa” nas responsabilidades e sem ter causado qualquer lesão na organização e na imagem pública, e também houve momentos dotados de muita irresponsabilidade provocada por certo desespero.

A vida presente de cada um de nós é o resultado de decisões pessoais e circunstâncias que resultam do ambiente em que estamos inseridos. O que nos envolve afecta o nosso rumo na vida. As minhas motivações foram ampliadas pelo desejo de contribuir para mudar alguma à minha volta para melhor.

Começou assim: os meus pais deram-me uma educação cristã e cedo comecei a exercitar o dever de ler a Bíblia, de participar num culto doméstico e ir à igreja. Aos 14 anos comecei a pôr em causa alguns valores e a roçar a perigosidade da marginalidade e fiz com que a vida dupla de "filho bonzinho" durasse até aos 18 anos, ocasião em que ingressei na Marinha como voluntário, e na Assembleia de Deus de Vila Franca de Xira me reencontrasse com Deus. De regresso à minha igreja local não podia consentir com o estado em que os adolescentes filhos dos crentes daquela comunidade se encontravam, a nível social e espiritual.

No dia em que decidi regressar à igreja tive esta recepção do Pastor que nunca mais me esqueci: "Então Samuel, agora que sabes que vou embora, decidiste voltar?" Respondi que não, já tinha decidido voltar antes de saber que aquele líder conflituoso iria embora. Encontrámo-nos anos mais tarde numa loja de instrumentos musicais em Lisboa e cumprimentámo-nos cordialmente. Este líder não permitia que eu ligasse a caixa de ritmos eletrónica que na altura estava em ascensão nos equipamentos e nas igrejas. Naturalmente que sempre que ele não estava por perto eu conduzia-me por aquelas batidas muito simples mas muito inovadores naquele tempo. Eram outros tempos.

A liderança, definitivamente, não foi uma escolha, foi um acidente. O serviço, esse sim, foi a obediência a uma chamada, uma responsabilidade e uma necessidade. Nunca quis a liderança. As pessoas surpreendem-se quando digo isto. Apenas quis ter uma família, uma vida cristã responsável pelos outros e os recursos pessoais suficientes para viver uma vida que pudesse beneficiar também alguns à minha volta.

À data presente, como se sabe, tenho um emprego e antes disso uma família. Por ser um emprego por turnos o preço e a vantagem são a privação de estar com a família e a disponibilidade para o serviço voluntário. Escrever isto só é possível porque estou num dos meus turnos da noite, feriado, e nem as gaivotas chateiam. Não. Uma delas anda por perto a berrar.

Sem o apoio da família tal tarefa seria impossível. Voluntário que não tenha uma família que o apoie é melhor que esqueça tal paixão mas por outro lado um ativista que não saiba proporcionar bons momentos à sua família como recompensa também não poderá ir muito longe. Uma das dificuldades como voluntário é que certo público só quer ver trabalho, resultados, sucesso, e não tolera que nos sentemos para um momento de relaxe. As redes sociais têm a vantagem de podermos divulgar as nossas virtudes, experiências, talentos, e gostos, mas também pode funcionar como uma armadilha: os que nos observam a trabalhar são diferentes dos que nos espiam quando nos sentamos para usufruir.

Também já conheci o outro tipo de liderança: a pastoral. Deixei a Marinha em 1991 e envolvi-me no ministério cristão a tempo inteiro como responsável juvenil e líder de música e só mais tarde fui reconhecido como Pastor na Assembleia de Deus do Fogueteiro. Tal coisa nunca fez parte dos meus planos de vida enquanto estava na Marinha e muito menos ser líder na igreja local em que fui criança. Para mim não fazia sentido e ainda hoje sou da mesma opinião de que, salvo raras excepções, isso pode ser muito limitador do exercício das responsabilidades requeridas. É também verdade que fui reconhecido como pastor porque ter um título trazia outro tipo de reconhecimento e autoridade. A questão da vocação é outro compeonato porque ao fim ao cabo as minhas funções exercidas na igreja foram muito mais outras coisas que isso mesmo, quem lê entenda.

É por isso que a Cruz Azul apareceu como um escape. Para servir o próximo usando esta organização eu não precisava de ser pastor, apenas se requeria que fosse membro de uma igreja local. Mas a Cruz Azul estava numa situação de “terra queimada” e além de lidar com uma questão marginal na sociedade e no meio evangélico, isso inviabilizava qualquer aventura que fizesse com que a instituição repetisse os erros de um passado recente.

A gestão de duas responsabilidades acabou por trazer os seus conflitos na equipa de liderança pois havia quem não aceitasse a minha missão de voluntariado na instituição, e em paralelo houve quem, com certa ambição pessoal, fizesse de tudo para que eu acabasse por abdicar da minha "posição de conforto" e escolher a Cruz Azul, o mesmo foi dizer, naquela altura, optar pelo desemprego. De qualquer forma o ambiente era de tal competição e de total obstrução de todas as iniciativas a nível do inaceitável, que o inevitável era escolher a melhor hora para sair. Um líder não pode ficar preso a um sistema que lhe pode causar a morte, tanto mais que naquela ocasião eu era “águia” convicta. Também não era a primeira vez que virava as costas a um investimento importante na minha vida ainda que este importa honrar e lembrar com satisfação pelos grandes momentos, aprendizagem e oportunidades vividas.

Dos quadros da Marinha para o ministério a tempo inteiro e deste para o desemprego. Isso provocou algum arrependimento pelas escolhas que fiz? Não. Eu sabia que tinha virar costas ao passado se quisesse viver um novo futuro. Mas desafios pessoais e dificuldades maiores ainda teriam que ser ultrapassadas.Os líderes estão sempre na mira de alguns atiradores. Esta é provavelmente uma das maiores frustrações que nos atingem. Além de terem que cumprir com uma missão há que ter cuidado com as emboscadas. Um líder não pode ter complexos, nem de que se lhe chame líder, até porque liderança é serviço, é influência, é abnegação. Não conheço um líder que não reconheça que em algum momento do seu trajeto e responsabilidade falhou. Os que não falharam, ou não o reconhecem, não são líderes.

A liderança voluntária é absolutamente diferente da liderança empresarial ou com salário fixo. O acesso à formação e informação para líderes voluntários é limitada. A formação tem custos e um voluntário, regra geral, não tem tempo para investir em formação, mesmo que saiba onde pode encontrá-la. Custa dinheiro e custa tempo a um voluntário a melhoria do seu desempenho.

Faz 10 anos que estes episódios aconteceram, tendo as hostilidades cessado em Dezembro de 2004 data em que fiz uma das melhores conquistas da minha vida: o poder de escolher o meu próprio destino. Essa escolha não foi feita sem condicionantes, claro, mas com muito melhor potencial escolher os caminhos que haveria de percorrer nos anos seguintes e até hoje. Olhando para trás, naquela altura comportei-me como um David: da casa do pai para o palácio e do palácio para a caverna.

Uma das regras básicas que aprendi a viver foi a “prestar contas”. Um líder tem que ter um líder a quem prestar contas. Se não puder ter um líder tem de ter uma equipa com quem possa partilhar tudo quanto sonha e tudo quanto gasta (e o que se desgasta) para lá chegar. Mas também aprendi que não se pode prestar contas a quem é preguiçoso, obtuso e imbecil.

Imbecil, é imbecil porque é inepto, desnorteado, trapalhão. Não se pode partilhar sonhos com pessoas de carácter oportunista porque eles irão sugar todas as ideias como se fossem deles e bloquear a oportunidade dos outros crescerem pois não gostam de concorrência e da exposição pública das suas incapacidades. Se não houver alguém com maiores virtudes com quem possamos partilhar também as nossas fragilidades então temos que encontrar um grupo de pessoas a quem possamos confessar cada uma delas e cada inquietação que tenhamos, e se for necessário em separado.

Qualquer mudança traz coisas boas e também as razoáveis, mas também algumas más as quais é necessário suportar nem que seja por algum tempo.

Em 1995 para reiniciar o trabalho com a Cruz Azul tinha recebido na conta bancária da instituição a quantia de 500 contos, cerca de 2.500,00 €. Em 2005, seis meses depois da decisão de romper com uma liderança totalitária, estava com um mapa cartográfico na mão a escolher um terreno para a Cruz Azul o qual hoje tem um valor patrimonial superior a 1 milhão de euros.

Fui chamado à Câmara Municipal do Seixal em Maio de 2005 depois de o Pelouro do Urbanismo ter consentido com a possibilidade de propor a atribuição de uma propriedade à Instituição.

Tem que ser referido que o mérito não é pessoal. Este bem foi o resultado de anos de liderança juvenil no Concelho do Seixal em regime de voluntariado enquanto estava na Marinha e posteriormente a tempo inteiro na igreja. Foi o resultado do trabalho nas ruas, das equipas de futebol de salão masculinas e femininas lideradas pelo Emanuel Gonçalves e com a camisola da Cruz Azul com jovens que pertenciam à Assembleia de Deus do Fogueteiro; foi também o trabalho de prevenção de drogas e o facto de a igreja ter um café convívio Desafio Jovem. Há grande mérito na liderança do Pr. Lucas da Silva e dos membros da Igreja que em tempo oportuno deram cobertura a muitos programas de rua em apoio e encaminhamento de toxicodependentes para o Desafio Jovem e para uma vida completamente restaurada. Se se pode ter algum lamento com esta ruptura de visão com a estratégica social é que uma vez recebida esta propriedade os recursos humanos foram poucos para assumir com maior rapidez toda a oportunidade que desenhou e que se vê hoje. Assim levou mais tempo a repor o ritmo que hoje está a ser retomado.

Fui ver um terreno nos Foros de Amora e entendi que não seria aquele pois se encontrava demasiado exposto às varandas dos prédios na zona em que se encontrava. Fui ver um segundo terreno em Fernão Ferro e cheguei à mesma conclusão relativamente às vivendas que o circundavam. Fui ver outro terreno no Pinhal dos Frades situado no centro do Concelho do Seixal, este completamente coberto de mato mas isolado o suficiente para garantir um futuro promissor para o recomeço de muitas famílias e sem vizinhança na proximidade que pudesse trazer alguma instabilidade para as actividades que poderão ser realizadas no espaço.

Aos 50 anos poderia “aposentar-me” com muita facilidade do meu voluntariado cristão pela razão simples de que consegui reunir alguns mecanismos com relativa independência à minha volta, isto é: a família, a igreja e a Cruz Azul. Mas é natural continuar como membro de uma igreja local e faz parte da minha natureza não ser passivo face ás necessidades que vejo à minha volta. Quanto á Cruz Azul ficaria muito feliz se me deixassem um pedaço de terra daquele enorme terreno para cuidar e algumas árvores para tratar mas há quem não queira para já conceder-me para já essa digna oportuidade.

Desta forma deixo aqui um breve resumo de certo percurso da minha vida e um pouco da história da Cruz Azul, a minha segunda cruz, que carrego com muita dedicação.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A mentira

 

Qualquer um que tenha dado um click para abrir este texto já mentiu a alguém. Apenas não consigo saber se continua a mentir.

Vivemos num mundo de mentira. Todos mentem. Os políticos, os empresários, os funcionários públicos, os empregados das empresas, os professores, os alunos, os pais e os filhos… porquê? Não seria melhor vivermos num mundo de verdade?