terça-feira, 28 de julho de 2015

Rotulagem e responsabilidade



Desde 1995 que sou ostracizado! É verdade. A afirmação pode parecer uma brincadeira mas é verdade. Uma parte de mim incomoda-se com isso mas a outra torna-me ainda mais resistente.

Desde essa data que fui confrontado vezes sem conta com este tipo de comentários:
- “Escondam as garrafas vem aí o homem anti-álcool!”
- “Não podemos beber, o Samuel está aqui!”

Quando vou ao médico, quer seja por rotina ou por excepção:

- O que é que você faz?
- Sou segurança e voluntário numa organização de solidariedade.
- Organização de quê?
- Lida com o problema do alcoolismo.
- Você já teve problemas com o álcool?

Claro que eu já estou habituado mas aquela minha parte provocatória, uma das que na minha vida realmente ainda requer alguns cuidados especiais e tratamento, quase sempre vem "ao de cima" nestas ocasiões.

É assim que a sociedade funciona. Alguns insistem em colocar rótulos e em encontrar problemas nos outros. Compreende-se que um médico seja assaltado por esta questão e, claro, o papel dele é fazer perguntas para conseguir o melhor diagnóstico. Mas onde pretendo chegar não é à responsabilidade do médico, é à responsabilidade da sociedade.

Em tempos fiz parte de uma comunidade evangélica onde havia um indivíduo que lutava contra a bebida e que ajudei durante bastante tempo. Com muita frequência ele queixava-se que não era convidado para os convívios porque os seus amigos (?) queriam “beber à vontade”. O comportamento de alguns membros da comunidade causava-lhe um outro problema adicional: o da rejeição.

O meu caso é diferente. Entrei nesta luta por acidente. A Cruz Azul precisava de alguém que “desse” uma mãozinha e naquela altura eu era abstinente de bebidas alcoólicas, por escolha pessoal, desde os meus tempos de Marinha. As pessoas que me rodeiam sabem que não me envolvi com a instituição por causa de "problemas com a bebida" mas nem mesmo assim me escapo à rotulagem. Não que eu tenha algum problema de “identificação” com os que sofrem com este vício mas a verdade é que sinto-me roubado na minha liberdade e opção de escolha em termos de voluntariado.

Relativamente à minha opção de abstinência, ou não, este blog é público e vocês não têm nada a ver com isso. Faz parte da minha liberdade de escolha pessoal e revelo-o a quem eu entender.

Não quero nem imaginar como alguns se ocupariam em desgraçar por completo a minha liberdade pessoal se dissesse que “colaboro numa organização de homossexuais”. Simplesmente, entendo, como o qualquer cidadão livre, que ninguém tem o direito de julgar pelo que cada um come ou bebe, nem tem que se justificar porque bebe ou não bebe.

Beber bebidas alcoólicas é uma escolha pessoal. Do mesmo modo que escolho um prato de carne ou peixe, assim escolho beber água ou beber vinho. Do mesmo modo que posso optar por ser vegetariano e ninguém tem o direito de me criticar ou avaliar, também posso optar por ser abstinente de bebidas alcoólicas.

Há mais uma questão. As pessoas que lidam com o bem-estar e a saúde das pessoas não são necessariamente “anti-coisa-alguma”. Quem são os “anti” são as forças policiais e o poder executivo, pois é a esses que compete a eliminação dos factores que de acordo com a Lei em vigor devem ser retirados da presença das populações. Os restantes cidadãos fazem uso da sua liberdade de escolha pessoal para intervir em favor do seu próximo nas áreas que cada um se sente mais motivado ou vocacionado.

Curiosamente é predominantemente no meio evangélico, por ser o aquário onde me movimento com mais agilidade, que esta rotulagem me é atribuída. Costumamos fazer uso da Bíblia em muitas situações, contudo, por vezes, esquecemo-nos de outras:

“Um crê que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come só legumes. Quem come não despreze a quem não come; e quem não come não julgue a quem come; pois Deus o acolheu. … porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber, mas na justiça, na paz, e na alegria no Espírito Santo.” Romanos 14:2-3, 17

O problema está quando nos esquecemos da “letra” ou quando não queremos dar importância aos “princípios”! Este texto deve ler-se também assim: “Um crê que de tudo se pode beber, e outro, que é fraco, come só bebe água. Quem bebe bebidas alcoólicas não despreze a quem não as bebe; e quem não bebe bebidas alcoólicas não julgue a quem bebe; pois Deus o acolheu. … porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber, mas na justiça, na paz, e na alegria no Espírito Santo.”

A questão está também relacionada com a pressão social que é predominante no comportamento da sociedade relativamente às bebidas alcoólicas. Esta pressão sobre as pessoas que: escolheram; não podem; não querem beber; é uma constante. É uma pressão que leva os abstinentes de álcool, permanentes ou esporádicos, a ter que justificar-se repetidamente, em vez de assumirem o direito de fazer uma escolha pessoal, e a pronunciar desculpas e mentiras.

Quem deveria, antes, ter cuidado com o uso e a pressão verbal deveriam ser estes:

“Assim, pois, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua. Não destruas por causa da comida a obra de Deus. Na verdade tudo é limpo, mas é um mal para o homem dar motivo de tropeço pelo comer. Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem fazer outra coisa em que teu irmão tropece.” Romanos 14:19-21

Para quem tem dificuldade com os princípios bíblicos, deverá portanto ler também assim: “Assim, pois, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua. Não destruas por causa da bebida a obra de Deus. Na verdade tudo é limpo, mas é um mal para o homem dar motivo de tropeço pelo beber. Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem fazer outra coisa em que teu irmão tropece.”

Desejo que sublinhar que desde que assumi responsabilidades na Cruz Azul nunca fui um promotor da abstinência de bebida alcoólica como uma regra que deva ser seguida por todos os que me rodeiam. Contudo, a abstinência de bebida alcoólica é:

- A ferramenta mais segura para quem tem problemas causados pela bebida;
- Necessária quando as pessoas estão sob determinadas limitações: menores de idade, grávidas e a amamentar, conduzir máquinas, no uso de medicamentos, idosos…;
- Uma opção no quadro da liberdade de escolha de cada indivíduo.

Entendi publicar este texto para que se perceba mais um pouco como não é fácil lidar com esta questão numa sociedade com um comportamento mais inclinado para a exclusão do que para a inclusão.

Certa ocasião, à porta da Aliança Evangélica Portuguesa, quando ainda estava no início do meu envolvimento com a Cruz Azul, fui ostensivamente gozado por um pastor, por motivo de ter tomado a opção de me envolver com a Cruz Azul. Aquele dia foi como que um teste para me preparar para outras provas ainda mais duras. Nunca mais me esqueci desse dia nem aquele telefonema, que o mesmo pastor alguns anos mais tarde me fez a pedir ajuda para filho.

Samuel Dias

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