quarta-feira, 16 de março de 2016

Tipos de alcoolismo


O alcoolismo deve ser encarado nas suas vertentes psicológica, social e médica.

Os indivíduos que consomem grandes quantidades de álcool, quer o façam sistematicamente, quer ocasionalmente em reuniões sociais intervaladas por períodos de abstinência, incorrem no perigo de criar problemas de ordem social e de saúde e, eventualmente, de se tornarem doentes alcoólicos.

Um consumidor de álcool que já não saiba, nem lhe interesse, evitar uma bebida transpôs a fronteira do perigo.

Ultrapassada esta fase, o indivíduo passa a beber em segredo, oculta as garrafas em casa e recusa-se a discutir o seu problema com quem quer que seja. Provavelmente, nesta altura será já um doente alcoólico.

Em Portugal, como noutros países produtores de vinho, existe nas áreas rurais um tipo diferente de alcoolismo.

Assim, nos habitantes das regiões produtoras a dependência física é atingida insensivelmente: sendo bebedores excessivos, não se reconhecem como tal, procurando explicações para os sintomas característicos da necessidade de ingerir álcool.

Na cidade, a dependência física é disfarçada pela sanduíche acompanhada de cerveja ou de qualquer outra bebida alcoólica, tal como bagaço ou vinho. Estas sanduíches comidas a meio da manhã e regadas com bebidas alcoólicas quebram o jejum, mas também a descida da alcoolemia (concentração de álcool no sangue), causadora dos tremores, fraqueza, etc.

A dependência física é o ponto comum e final em que desembocam os vários tipos de alcoolismo. A dependência psicológica antecede muitas vezes à dependência física.

I. TIPOS DE ALCOOLISMO

Ignora-se o número exacto de alcoólicos nos países mais desenvolvidos, mas todas as estimativas relacionadas com o problema do alcoolismo - o consumo do álcool, as condenações por embriaguez, as condenações por condução em estado de embriaguez, os internamentos hospitalares por alcoolismo e os óbitos por doenças relacionadas com a ingestão abusiva do álcool, tais como a cirrose - indicam um aumento constante do consumo de álcool. Existem diversas causas possíveis para este facto: uma maior aceitação social do grande consumo de bebidas alcoólicas, maior prosperidade, especialmente entre as mulheres e os jovens. Como resultado destes factores, os alcoólicos - de ambos os sexos - surgem praticamente em todos os grupos etários e todas as categorias profissionais e sociais.

Em Portugal, situa-se geralmente o número de alcoólicos entre 800.000 e 1 milhão, não havendo, no entanto, estatísticas que permitam garantir um número com segurança.

No alcoolismo feminino, também com tendência para aumentar, estariam em maior risco as mulheres submetidas ao duplo stress profissional e doméstico; as mulheres com isolamento social ou maridos ausentes do lar; as mulheres domésticas de meia-idade vivendo sós, depois de os filhos adultos abandonarem o lar.

Merece referência o alcoolismo infantil detectado na escola primária pelos professores em crianças irrequietas, desatentas, indisciplinadas. Os pais destas crianças têm muitas vezes um problema de álcool.

Entre a juventude o álcool aparece como acompanhante de outros tóxicos - haxixe, anfetaminas, hipnóticos, etc. - em poli-intoxicados.

Os tipos de alcoolismo variam grandemente. O sociólogo americano Prof. E. M. Jellinek, pioneiro da moderna abordagem científica do problema, descreveu cinco tipos de alcoolismo, embora não exista um tipo puro e no mesmo indivíduo possam ser identificados simultaneamente dois ou mais tipos de alcoolismo.

Tipo 1 (alcoolismo Alpha). O indivíduo tem um grave problema psicológico - tal como depressão ou ansiedade - e bebe excessivamente para tentar ultrapassá-lo.

Tipo 2 (alcoolismo Beta). O indivíduo não criou necessariamente uma dependência em relação ao álcool, mas o facto de beber continuamente acarreta-lhe uma deterioração física ou mental – causando, por exemplo, a CIRROSE, a polinevrite ou a DEMÊNCIA. Os frequentadores e proprietários de bares são particularmente propensos a este tipo de alcoolismo.

Tipo 3 (alcoolismo Gama). O aspecto mais característico deste tipo de alcoolismo reside no facto de o indivíduo conseguir aguentar longos períodos sem beber. Contudo, uma vez que comece a beber, torna-se—lhe difícil ou impossível parar, e o «copo ou dois» que eventualmente estabeleceu como limite transforma-se em muitos (ausência de controle). Além disso, os períodos de abstinência rareiam e encurtam-se progressivamente. Este padrão encontra-se mais frequentemente entre os alcoólicos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, possivelmente porque nestes países o abuso da bebida é socialmente mais condenável que nos países onde normalmente se consome bastante vinho.

Tipo 4 (alcoolismo Delta). O indivíduo nunca fica verdadeiramente embriagado, mas ingere continuamente álcool em pequenas quantidades e durante todo o dia, não conseguindo libertar-se deste hábito. Este padrão é mais vulgar nos países onde se consome muito vinho, como em França, onde a legislação relativa à venda de bebidas alcoólicas é bastante liberal e a tolerância social é grande.

Tipo 5 (alcoolismo Épsilon). Anteriormente conhecido por dipsomania. O alcoólico deste tipo apenas ingere álcool periodicamente, mas só fica satisfeito quando perde o controle de si mesmo, podendo mesmo ficar inconsciente. Contrariamente ao alcoólico Gama, que se encontra embriagado a maior parte do tempo, o alcoólico Épsilon está geralmente sóbrio.

II. O ALCOOLISMO COMO DOENÇA

Apesar dos perigos inerentes aos cinco tipos de alcoolismo, Jellinek apenas considera os tipos Gama e Delta como verdadeiras doenças pelas alterações metabólicas e de nível bioquímico provocadas pelo álcool e que se traduzem clinicamente pela dependência física e pelo síndroma de abstinência.

Um dos processos mais rápidos e mais fáceis de determinar se um indivíduo é ou está em vias de se tornar alcoólico consiste na aplicação do teste CAGE – assim denominado a partir das iniciais das suas palavras-chave em inglês. Este teste, apresentado em 1974 pela Associação Americana de Psiquiatria, compõe-se de quatro perguntas:

1. (cut down) – C. O indivíduo sente que deve beber menos?

2. (annoy) – A. O indivíduo reage mal quando é criticado pela quantidade de álcool que ingere?

3. (guilty) – G. O indivíduo sente-se culpado por beber demasiado?

4. (eye-opening drink) – E. É seu hábito tomar uma bebida logo pela manhã para aliviar a tensão nervosa ou dissipar os efeitos de uma ressaca?

Um indivíduo que responda afirmativamente a todas as perguntas – ou mesmo só às três primeiras – é provavelmente um alcoólico. Se responder afirmativamente apenas a uma ou duas das perguntas, deverá tomar cuidado com a quantidade de bebidas alcoólicas que ingere.

III. GRUPOS DE ALTO RISCO

Para identificar aqueles que incorrem em maiores riscos de se tornarem alcoólicos, os peritos médicos examinam três aspectos vitais do indivíduo: a sua constituição física e psicológica, o ambiente em que vive, trabalha e procura as suas distracções e os efeitos físicos do álcool sobre o seu organismo.

As pesquisas efectuadas desde o início do século em países como a Grã-Bretanha revelam que determinadas profissões, como empregado de bar e restaurante, marítimo, caixeiro-viajante, jornalista, e ainda profissões liberais, etc. , acarretam um grave risco de alcoolismo. Em Portugal, poderíamos acrescentar talvez o factor geográfico – áreas de produção vinícola – e também a migração interna.

Regista-se ainda, de modo geral, um elevado índice de alcoolismo entre os condutores que sofrem acidentes rodoviários; entre os indivíduos com tendências suicidas; entre os indivíduos, principalmente do sexo feminino, que tomam habitualmente mais tranquilizantes ou sedativos do que os receitados pelos médicos e entre os filhos de indivíduos com problemas de bebida.

IV. CONSEQUÊNCIAS DO ALCOOLISMO

Encarando o alcoolismo nas suas vertentes individual e social, teremos:

1. Consequências para o indivíduo: psíquicas e físicas.

2. Consequências sociais: profissionais, familiares; etc.

Consequências psíquicas.

É comum nos alcoólicos a tendência para a ansiedade, a depressão e a irritabilidade.

A irritabilidade é muitas vezes o primeiro sinal de ordem psicológica detectado pelos familiares e colegas.

É discutível em todos os casos se esta tríade é causa ou consequência do alcoolismo, sendo por vezes difícil descobrir a origem do problema. Melhor será encarar esta tríade no ciclo vicioso da manutenção psicológica do alcoolismo.

Em 10% dos alcoólicos surgem perturbações mais sérias à medida que o alcoolismo se agrava. Os ciúmes, tão frequentes nos alcoólicos, podem evoluir para um verdadeiro delírio de ciúme, em que tudo é interpretado em relação com a crença básica da infidelidade.

Outra complicação psíquica geralmente surgida depois de um DELIRIUM TREMENS é a alucinose alcoólica, em que o doente sofre de intensas alucinações auditivas, ouvindo pessoas que o insultam e ameaçam.

Também depois de um delirium tremens pode instalar-se um SÍNDROMA DE KORSAKOFF, que compreende amnésia de fixação (corresponde a um gravador que deixou de gravar, mas é capaz de reproduzir o material gravado), confabulações, ou seja a criação ou invenção de factos destinados a colmatar os vazios da memória.

Num grau avançado, teremos a demência alcoólica, semelhante a outras demências, mas em que predomina nos primeiros tempos o apagamento dos padrões éticos anteriores à doença.

De longe, a complicação psíquica e orgânica mais frequente do alcoolismo é o delirium tremens, que culmina o síndroma da abstinência e envolve, além de sintomas orgânicos como febre, taquicardia, suores, etc., sintomas psíquicos: confusão mental, onirismo (como num sonho), alucinações visuais ( geralmente de animais) e tácteis, grande ansiedade e, por vezes, delírio ocupacional (o doente fala e actua como se estivesse no seu trabalho habitual).

Consequências físicas.

São múltiplas as lesões físicas provocadas pelo alcoolismo. As mais importantes e mais conhecidas são as lesões hepáticas, que muito sumariamente se podem esquematizar em:

1. Fígado gordo alcoólico: reversível se o doente deixar de beber.

2. Hepatite alcoólica (inflamação do fígado): pode ser reversível ou agravar-se, conduzindo a uma cirrose.

3. Cirrose alcoólica (substituição das células do fígado por tecidos fibrosos): é irreversível, embora seja possível mantê-la estacionária através da abstinência do álcool.

Outra consequência grave é a lesão cerebral. A tomografia cerebral computorizada (TAC) é um método radiológico que permite a descoberta de formações anómalas no interior dos tecidos, como, por exemplo, tumores, detectando também os vazios ou atrofias dos tecidos. O TAC revelou que os cérebros dos grandes bebedores podem estar atrofiados. Esta atrofia não tem ainda hoje explicação unívoca, admitindo-se que esteja ligada à deficiência de vitamina B1. Também o sistema nervoso periférico (nervos motores e sensitivos) pode estar frequentemente afectado. É o que acontece na polinevrite alcoólica – dores e parestesias geralmente das extremidades inferiores, nos pés em especial. A evolução pode fazer-se no sentido do pé pendente com falta de força para a flexão dorsal. Numa situação extrema, a polinevrite impossibilita a marcha (às vezes encontra-se também um componente cerebeloso com a consequente ataxia) e o doente acaba por viver acamado e com a desagradável acompanhante de incontinência esfincteriana, pois a polinevrite ataca também os nervos que controlam os esfincteres musculares do ânus e bexiga.

Muito comum também é a gastrite, responsável pelos vómitos matinais, tão frequentes nos alcoólicos. As úlceras gástrica e duodenal, que não são consequência do alcoolismo, surgem, no entanto, frequentemente nos alcoólicos. O tratamento é por vezes cirúrgico, efectuando o cirurgião uma gastrectomia parcial (ablação parcial do estômago). Desta gastrectomia resulta uma absorção maciça de álcool e a alcoolemia sobe em flecha, atingindo valores muito elevados – até seis vezes a alcoolemia esperada para uma dada quantidade de bebida alcoólica. Este facto reveste-se de importância porque, após a intervenção, o bebedor mantém a sua ingestão alcoólica e sofre as consequências de alcoolemias elevadas com a «consciência tranquila».

Também o álcool pode estar na origem quer da pancreatite crónica, quer da aguda. Esta, clássica dos grandes comedores e bebedores, é um quadro de doença abdominal aguda extremamente grave que se acompanha de estado de choque e se confunde com facilidade com a perfuração da úlcera gástrica.

Convém mencionar ainda certos tipos de cancro em que o álcool, aliando-se ao tabaco, teria um papel etiológico: cancro da boca, laringe, faringe e esófago. Em consequência da doença hepática, podemos encontrar anemia e tendência hemorrágica, principalmente devido ao deficit de uma série de factores de coagulação sintetizados no fígado.

V. COMO MINIMIZAR OS RISCOS DO ÁLCOOL

Considerando as consequências catastróficas para a saúde pública derivadas do consumo excessivo do álcool, tem-se procurado estabelecer a quantidade máxima que um indivíduo saudável pode ingerir sem perigo. Em França, cuja capitação alcoólica não é muito superior à portuguesa, metade das camas de medicina são ocupadas por doentes sofrendo as consequências do alcoolismo: cirrose, pancreatite, polinevrite, etc. A este custo social há que acrescentar os acidentes de trabalho, de viação e o absentismo.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem-se interessado pelo estabelecimento desta fronteira do lícito em álcool. Geralmente, admite-se como limite 1g de álcool por dia por quilo de peso para um indivíduo saudável alimentando-se bem. A mulher grávida não pode beber qualquer quantidade de álcool; as crianças também não devem beber qualquer quantidade porque com muito mais facilidade do que o adulto caem em coma etílico. Com efeito, só depois dos 18 anos o fígado tem a capacidade para metabolizar devidamente o álcool.

Os indivíduos do sexo feminino, em princípio, têm também uma capacidade de destruição do álcool inferior aos do sexo masculino, por possível influência hormonal ao nível da metabolização hepática.

VI. TIPOS DE TRATAMENTO

A psicoterapia de grupo é geralmente considerada como a espinha dorsal do tratamento.

A psicoterapia pode ser directiva e pedagógica ou de orientação não directiva – geralmente de orientação analítica. Actualmente, utiliza-se muito a análise transaccional.

É evidente que a psicoterapia pode também ser individual: os terapeutas do comportamento, que ultimamente têm vindo a interessar-se pelo alcoolismo, pretendem a modificação da conduta alcoólica: a finalidade do tratamento não seria a abstinência, mas o consumo moderado das bebidas alcoólicas. Contudo, a maior parte dos psiquiatras que se interessam pelos problemas do álcool têm prática dentro desta subespecialidade considera esta posição extremamente perigosa, visto que o sonho, a aspiração nunca concretizada do alcoólico, é precisamente a moderação.

Tratamento com medicamentos.

É indispensável para o controlo do síndroma de abstinência. Habitualmente, usam-se vitaminas do complexo B em altas doses e tranquilizantes. Como terapêutica sintomática das queixas de tipo neurótico após a desintoxicação, é muitas vezes prescrita uma terapêutica de manutenção com ansiolíticos, o que, no entanto, envolve nestes doentes o perigo da substituição de uma farmacodependência por outra. (A terapêutica de manutenção ideal é a proporcionada pela psicoterapia de grupo, quer em grupos formais de psicoterapia, quer em psicoterapias informais das reuniões de alcoólicos recuperados.)

É de uso corrente o tetradim ( antigo antabus ), existindo entre nós apenas sob a forma de comprimidos e noutros países sob a forma de injecção dépôt e de implantações subcutâneas. Trata-se de uma droga que bloqueia o catabolismo (destruição) do álcool, acumulando-se produtos tóxicos que provocam vermelhidão, vómitos, mal-estar, opressão torácica, dificuldade respiratória e, em grau extremo, colapso circulatório. O tetradim é usado como uma espécie de colete-de-forças químico para o alcoólico, discutindo-se se diminui de facto a apetência.

É vulgarmente vendido por farmacêuticos complacentes as esposas chorosas que querem «um remédio para o marido odiar o vinho». A esposa «amiga e envenenadora» esmaga os comprimidos e ministra-os ao marido misturados na comida.

Trata-se de um procedimento perigoso e de modo nenhum aconselhável pelos riscos que envolve e pela ilegalidade do acto.

Tratamento social.

Visa a reinserção social (familiar, profissional, etc.) do alcoólico e constitui geralmente uma das finalidades das sociedades antialcoólicas. No tratamento social pode ainda integrar-se a psicoterapia de âmbito familiar.

CONCLUSÕES

O primeiro passo para a recuperação é o reconhecimento pelo próprio alcoólico da sua doença. O segundo passo é a tomada de consciência da sua situação real – psíquica, física e social -, com a consequente motivação para o tratamento.

A finalidade de qualquer tratamento é devolver ao alcoólico e à sua família uma vida normal. Na sua maioria, os médicos especialistas crêem que este objectivo só se consegue através de uma abstinência total, já que um alcoólico nunca fica completamente curado – limita-se a resistir à tentação de beber.

As perspectivas para a maioria dos alcoólicos são consideravelmente mais optimistas do que muitas pessoas – incluindo médicos – crêem. Os alcoólicos que querem sinceramente perder a sua dependência conseguem-no – desde que procurem e aceitem a ajuda competente.

In "Alcoolismo", Cruz Azul, Dr. José Manuel Leitão de Barros
Edição de: Cruz Azul de Portugal
In Selecções do Reader’s Digest - Enciclopédia Médica Ilustrada
Texto integral sobre o alcoolismo, amavelmente cedido à Cruz Azul de Portugal para a reprodução deste pequeno livro. Proibida a reprodução total ou parcial, do texto, sem autorização do editor original.



Selecções do Reader’s Digest
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Lisboa
ISBN: 972 8381 05 0
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Este artigo transitou de cruzazul.pt para este blog.

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